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18 de Maio de 2024

Novas regras para distrato de contratos de imóveis na planta

Garantias do Consumo.

Publicado por Eloy Banzi
há 7 anos

Novas regras para distrato de contratos de imveis na planta

O contrato de incorporação imobiliária é um contrato de consumo e, como tal, submete-se aos preceitos do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), também regulado por lei especial, a Lei 4.591/64, a qual representou um grande avanço para a regulação no setor imobiliário na época, ao tratar do tema da promessa de compra e venda e da incorporação como forma de facilitar o acesso à casa própria enquanto desejo a ser perseguido pela maioria da população brasileira. Mas, ao contrário do que pode parecer, a lei especial de 1964 não regulou o tema do distrato. Esse tema continua em debate no meio jurídico, tendo como pano de fundo a denominada "crise do setor imobiliário", pois, com o superendividamento dos consumidores, desemprego em alta e o contexto de crise econômica vivenciada pelo país nestes últimos anos, muitos consumidores enfrentam a dura realidade de ter que devolver os imóveis.

O grande número de “devoluções” de imóveis pelos pretensos compradores, desfazendo negócios que, pela lei especial, seriam irretratáveis, tem levado o setor imobiliário a pedir a elaboração de uma medida provisória, sem que seja necessário um maior aprofundamento de discussões na sociedade civil, pretendendo impor regra que autorize a “retenção de até 80% dos valores pagos pelos adquirentes”.

É preciso pontuar que o artigo 53 do CDC veda cláusulas de decaimento, em que o consumidor perde todos (ou quase todos) os valores pagos para aquisição da casa própria, como a proposta em discussão pelo setor representante das construtoras/incorporadoras. A análise do discurso a respeito da necessidade de regular o distrato deve iniciar pelo questionamento do verdadeiro sentido de se considerar irretratável o contrato de aquisição de propriedade por incorporação imobiliária na Lei 4.591/64, bem como da suposta insegurança jurídica que o desfazimento desses contratos estaria gerando no seio social. O escopo da lei da década de 1960, como se observa na leitura de seus dispositivos, foi a proteção do adquirente-consumidor, trazendo, como decorrência, uma série de artigos a respeito da necessidade de registro do incorporador e transparência na consecução de seus negócios.

O contexto histórico da lei especial sobre incorporações também revela que a grande preocupação estaria em tutelar o adquirente em relação ao negócio futuro, pois o bem imóvel ainda estaria por ser construído. Veja-se que essa preocupação não era infundada na época, considerando que o Decreto-Lei 58/37, que trata sobre o loteamento e venda de terrenos para pagamento por prestações, trouxe a regulamentação dos efeitos da promessa de compra e venda e adjudicação compulsória para os adquirentes que, sem qualquer segurança jurídica, perdiam imóveis em razão de cláusulas de arrependimento e compromissários vendedores que não cumpriam com os contratos, sem gerar qualquer consequência como direito real.

Deve-se sublinhar que o Código Civil de 1916, principal instrumento legislativo para a regulação dos atos da vida civil, como a realização de contratos, não previa hipóteses de resolução sequer por atos imprevisíveis. O artigo 478 do novo Código Civil de 2002 inaugura essa hipótese, que já vinha sendo admitida pela doutrina e no Direito Comparado. E assim, em um contexto em que os dogmas do individualismo como o princípio do pacta sunt servanda e da autonomia da vontade acabavam sendo cada vez mais questionados no contexto da sociedade de massa. Os princípios do CDC passam a integrar e reger todos os contratos, principalmente tendo em consideração o princípio da vulnerabilidade, da boa-fé objetiva, do equilíbrio contratual e da transparência tão caros ao Direito do Consumidor.

Mencione-se, ainda, que a Constituição de 1988 trouxe como direito fundamental também o direito à moradia, que não se confunde com o mero direito de propriedade, a revelar que a proteção do adquirente da casa própria ganha status constitucional, levando-se em conta direito social reconhecido em tratados internacionais pela República Federativa do Brasil.

A análise desses instrumentos legislativos, a partir de um olhar apurado da doutrina pelo método do diálogo de fontes, revela que é preciso atentar ao sujeito vulnerável no mercado de consumo e reconhecer que a aplicação conjunta dessas normas, gerais e especiais, deve estar orientada pelos valores constitucionais. Especialmente no setor imobiliário, aquele que adquire o produto final — imóvel — está adquirindo o sonho da casa própria.

Portanto, se passamos um período de recessão para esse setor, em razão da resolução de contratos de compra e venda de imóveis na planta, é preciso pontuar que recessão muito mais profunda já está implantada nas famílias desses consumidores que, como última saída, desistem da aquisição de seu mais precioso bem em razão de não terem mais condições financeiras de se manterem adimplentes nos contratos. O risco sistêmico é que se estes já superendividados consumidores tiverem que assumir agora — pois a medida provisória entraria imediatamente em vigor, revogando as normas que o consumidor confiou quando adquiria seu imóvel — o mercado brasileiro consumidor todo vá a bancarrota, criando crise sem precedentes nas famílias e no mercado brasileiro, apenas para beneficiar um setor econômico!

Note-se que, se o consumidor vai ao distrato, essas resoluções normalmente ocorrem em razão de fatores externos, decorrentes do momento econômico atual, como a perda do emprego e diminuição de renda que fazem com que o consumidor não consiga mais efetuar o pagamento das prestações. Vivenciam situações de superendividamento, colocando em risco a própria dignidade e sobrevivência em razão das dívidas contraídas.

A ausência de legislação específica sobre o percentual relativo à retenção na hipótese de resolução por inadimplemento levou os tribunais a considerarem que devem ser devolvidas as parcelas pagas com uma compensação de 10% a 25% dos valores pagos pelos consumidores. Veda-se o enriquecimento sem causa do fornecedor e o desequilíbrio do contrato, aplicando-se os princípios do CDC que protegem contra as abusividades no mercado de consumo. Também coube à jurisprudência fixar a forma de devolução em súmula do STJ que estabelece a devolução imediata dos valores pagos pelos consumidores.

A forma unânime como os tribunais têm se posicionado, em especial o Superior Tribunal de Justiça, demonstram que o tema é da maior importância e não apresenta atualmente qualquer "insegurança" aos contratos em geral ou antijuridicidade, nem emergência ou necessidade de ser regulado por medida provisória. Ao contrário, o que se deve fazer é atualizar o CDC para regular a questão dos consumidores superendividados. O volume de processos jurídicos sobre o tema retrata não apenas uma faceta da denominada crise do setor, mas a dificuldade dos consumidores de se manterem no sonho da aquisição da casa própria e, mais ainda, a necessidade de se recorrer ao Poder Judiciário para o reconhecimento de direitos já consolidados no âmbito jurisprudencial.

Assim, causa espécie o conteúdo extremamente prejudicial aos consumidores que apresenta esse projeto por meio de medida provisória. Deve-se pontuar que já havia ocorrido, no início de 2016, uma tentativa do setor imobiliário em regular os distratos por meio de um “pacto”, intermediado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e com participação da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor. Esse “pacto” foi duramente criticado pelas entidades envolvidas na defesa do consumidor por afronta aos dispositivos do CDC, com previsão, por exemplo, que a publicidade não contivesse dados obrigatórios de cumprimento para os fornecedores, devendo valer apenas as disposições contidas no contrato. No que concerne à resolução por inadimplemento do consumidor, esse perderia um total de 10% do valor do imóvel, mais perda de arras, o que poderia totalizar quase a totalidade dos valores, por ele, pagos. O movimento consumerista conseguiu que a Senacon se retirasse desse chamado “pacto”, que deveria ter validade nacional.

Eis que tentam ser reascendidos os dispositivos do “pacto” sob a forma de uma medida provisória. A forma, nesse ponto, é tão relevante quanto o conteúdo, considerando que as medidas provisórias se destinam a regular questões de relevância e urgência na forma do artigo 62 da Constituição Federal. Na contramão da exigência formal do ato normativo mencionado, a necessidade de um debate é essencial para que a sociedade possa ser esclarecida das consequências que esses dispositivos terão na vida de milhares de cidadãos pretendentes a adquirir imóvel por meio de compra na planta.

A proposta de medida provisória prevê que, no caso de resolução por inadimplemento: “Em qualquer das hipóteses, o adquirente fará jus à restituição de quantia nunca inferior a 20% (vinte por cento) dos valores por ele pagos ao incorporador, excetuando-se os valores correspondentes a eventual multa por atraso no pagamento das parcelas e juros incidentes ao referido atraso”.

Percebe-se que a mudança proposta é radical: de uma jurisprudência que garante de 90% a 75% de restituição dos valores pagos, propõe-se uma restituição de apenas 20% desses valores! É claro que argumentarão que esses valores serão maiores caso o consumidor tiver pago mais pelo seu imóvel, por exemplo, se tiver pago R$ 200 mil de um imóvel que vale R$ 500 mil, perderá “apenas” R$ 50 mil já pagos, acrescido de outras multas e encargos. No entanto, sabe-se que as vendas de imóveis na planta normalmente financiam em média de 20% a 30% do valor do imóvel. Assim, se o imóvel vale R$ 500 mil, o valor despendido nesse contrato gira em torno de R$ 150 mil, divididos em uma média de 60 prestações, incluída a entrada, pagamento de parcelas intermediárias e comissão de corretagem. Muitas vezes, o que já foi adimplido antes do distrato não corresponde a 15% do imóvel, assim, a multa, na maioria dos casos, acabará gerando quase ou a perda total dos valores pagos com a “garantia” de restituição de 20% do que se pagou.

O fornecedor receberá de volta o bem, muitas vezes valorizado, livre e desembaraçado para negociar novamente no mercado pelo preço total. A regulamentação proposta tem em conta, ainda, revogar a súmula do Superior Tribunal de Justiça que determina a imediata devolução dos valores pagos pelo consumidor, para que os fornecedores efetuem essa devolução apenas no encerramento das obras. Mais uma vez, trata-se de transferência abusiva dos riscos para o consumidor.

Portanto, a regulação que pretende ser feita por meio de medida provisória, alterando de forma drástica as normas atuais e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, representará significativa afronta à legislação consumerista em vigor, ao Código Civil e à Constituição Federal, deixando de proteger o consumidor e restringindo direito fundamental relativo à moradia. Sob um alarde de crise, os direitos dos consumidores, de ordem pública e função social, não podem ser simplesmente aniquilados, diminuídos sem qualquer discussão na seara política.

Por Claudia Lima Marques e Daniela Corrêa Jacques Brauner

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4 Comentários

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Lamentável essa MP. Não bastasse o STJ ter jogado nas costas do consumidor a obrigatoriedade da comissão de corretagem, agora com uma canetada querem jogar a parte mais fraca pro fundo do poço.

LAMENTÁVEL continuar lendo

Muito interessante a contribuição! É sempre interessante analisar a conjuntura da negociação.
Nem sempre o comprador é aquele consumidor em busca da casa própria. Assim, diante de inúmeros investidores que nos deparamos antes da crise, certamente o judiciário deveria ver com parcimônia o alegado desequilíbrio contratual.
Obrigada pelo excelente texto! continuar lendo

Informações muito importantes para o consumidor, que deve analisar muito antes de assinar um contrato. continuar lendo

Excelente trabalho! Prezadas Dras. Cláudia e Daniela, depois da fundamentação exarada na decisão que reconheceu a legalidade da cobrança da comissão de corretagem, em desfavor do consumidor, eu não vou me surpreender se tal MP for editada...
As construtoras e incorporadoras alegam "enormes prejuízos" por decorrência das resoluções contratuais promovidas pelos adquirentes, quando na realidade recebem de 110 a 125% dos valores dos imóveis quando essas rupturas contratuais ocorrem. Ou seja, recebem 100% mais a respectiva valorização (representado pelo próprio imóvel) e mais uma multa que varia de 10 a 25% sobre os valores pagos. Atualmente, até a Comissão de Corretagem e a SATI não são mais devolvidas.
A pergunta que se faz é: onde estão esses prejuízos?
O problema é que o empreendedor desse segmento utiliza-se de recursos captados dos próprios adquirentes para financiarem seus negócios, quando na realidade deveriam utilizar-se de recursos próprios, justamente, pelo simples fato de não gerarem quaisquer juros. Dessa forma, podemos afirmar que qualquer pessoa poderá constituir seu negócio sem a necessidade de realizar qualquer investimento do próprio caixa, além de se estar transferindo todos os risco aos adquirentes ou financiadores das obras ou projetos (verdadeiros sócios coproprietários dos imóveis).
Com isso, é correto afirmar que a maioria das construtoras do país, na realidade, são verdadeiras administradoras de recursos para fins específicos (semelhante ao que ocorre com os consórcios de bens), o que podemos classificar como verdadeiro absurdo!
Nesse passo, quando ocorre a inadimplência ou resolução dos contratos, as "construtoras" tem que se valer dos empréstimos bancários, cujos juros não são nada atrativos, além das exigências de garantias que, na maioria das vezes, são realizadas por meio da alienação fiduciária das unidades que já foram comercializadas, gerando-se uma instabilidade contratual enorme com relação aos adquirentes. Problemas esses que não existiriam caso as construtoras possuíssem condições financeiras para garantir a implementação de seus projetos com recursos próprios, ao menos em uma percentagem considerável. continuar lendo